terça-feira, 6 de setembro de 2011

O Brasil é mesmo um país independente?


[olho+de+mulher+brasil4444.jpg]O Brasil em recortes atalhos e descaminhos

"A tentativa de compreender o quadro atual em que se situa a sociedade brasileira não pode prescindir de uma leitura retrospectiva com base no modo como se processou sua narrativa histórica. Somente a partir de um olhar desapaixonado, torna-se viável a percepção objetiva, mediante a qual os acontecimentos devem ter a dimensão mais real possível, ou seja, é imprescindível reduzir a significação mínima o que possa eventualmente ter sugerido conquista máxima, ou mesmo salto grandioso. Assim estabelecido, proponho a secura de um recorte que apenas deixe exposta a ferida. É claro que a listagem a seguir se faz habitar por grosseira simplificação dos acontecimentos. Todavia, não se revela inviável que assim as ocorrências históricas possam também ser vistas. Trata-se de uma questão de perspectiva, sem dúvida, redutora, porém portadora de algum vigor crítico. Vejamos.
Não será segredo para ninguém um pouco mais letrado que a visão histórica a respeito da trajetória brasileira, a julgar o gosto dominante, tende para uma contaminação de uma certa atmosfera "novelística", cujo início é marcado pela "calmaria", acidente climático, segundo o qual a terra brasílica teria sido descoberta. Esta imagem ainda é tão encontrável em fontes didáticas de qualidade sofrível quanto freqüente é sua circulação no meio estudantil.
Adiante, a Inconfidência Mineira se fixou como a rebeldia de pequeno grupo de "idealistas" que, à figura de Tiradentes, se soma indisfarçável alusão iconográfica, tradutora da vocação messiânica, na qual Tiradentes, na forca, sugere Cristo na cruz. Dificilmente se tenta compreender no episódio o choque de interesses entre a Coroa e a emergente burguesia local.
Diferente não é o capítulo da Independência que, não bastasse o rompante de um ambicioso, ainda traz a insólita marca de singularidade: o Brasil foi o caso singular de uma Colônia cuja independência foi decretada pelo próprio colonizador. A respeito de D. Pedro I, o imaginário societário parece vê-lo, reforçado pela pintura, como "herói romântico e excêntrico".
Com o tema da abolição, o enredo não se comportaria de maneira distinta: por imposição da Coroa britânica, Princesa Isabel assina o decreto, lançando milhares de escravos ao abandono de suas precárias vidas. Nada foi preparado para permitir àquela sofrida gente mínima condição de auto-suficiência.
Se, por rompante e ambição, declarou-se a Independência, em iguais condições, determinou-se a República. O brasileiro dormiu no Império e acordou, no dia seguinte, republicano. Em lugar de um imperador, havia um marechal. Afora levantes aqui e ali, por divergências de interesses, a exemplo das batalhas no Sul e no Norte, a República foi instalada. Outra página abrir-se-ia no livro da história brasileira, abrigando a resistência promovida por Antonio Conselheiro e seus seguidores (Canudos) mais um de heroicização sob inspiração messiânica. Em não mais de três décadas, a ainda "nova" República já era motivo para ser rebatizada de "Velha República" (ou "República Velha").
O fato a separar a "velha" da "nova" é ilustrado pela chegada de Getúlio Vargas ao poder. Por ser o primeiro mandatário da República com projeto de estadista, logo percebeu que o plano engendrado não seria viável, sem desmontar as oligarquias políticas já viciadas. Fechou o parlamento e, em 1937, firma o Estado Novo.
O cenário brasileiro volta a pulsar com o retorno de Vargas, presença assegurada pela vitória nas urnas em 1950. Campanha pelo petróleo, inauguração da Petrobrás (à época, por uma questão de lógica gramatical, usava-se o acento agudo), BNDS, CNPQ, usina de Volta Redonda, Companhia Siderúrgica Nacional, entre outros feitos. Enfim, um estadista voltado para a execução de um efetivo programa de governo. Interesses contrários (nacionais e internacionais), a pretexto de reais irregularidades promovidas em escalões inferiores, mas próximos à presidência, desencadearam campanha ostensiva, conduzindo o presidente ao extremado ato de suicídio. Precisamente, em 24 de agosto de 1954, o Brasil se despedia de seu último estadista. Por todas as sucessivas décadas, nunca mais a cadeira da presidência da República foi ocupada por quem efetivamente tivesse para o Brasil um projeto de Nação.
Sucedeu-se o governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira. Afora tentativas de tramas golpistas, vendeu-se a imagem do "mito do desenvolvimento", sob a força apelativa do slogan 50 anos em 5. Sem dúvida, o período sugeriu prosperidade e garantiu liberdades individuais. Fatos concorreram para disseminação de um perfil nacional afirmativo: Copa do Mundo, título mundial em tênis, boxe, bossa-nova. É bem verdade que nenhuma dessas conquistas tinha diretamente a ver com o governo. Tratava-se de talentos que se haviam formado bem antes. Do governo mesmo, provieram a criação de Brasília e implementação da indústria automobilística. Apenas com essas duas, tem-se o suficiente para a escalada do endividamento econômico e do desvio de rotas cujo custo a médio e longo prazo por ele ainda pagamos. O decantado impulso industrial provocado pela indústria automobilística se tornou o responsável por retalhar o país em rodovias, além de plantar no imaginário consumista nacional o culto ao automóvel. Desprezamos unir o país pelos meios mais baratos (hidrovias e ferrovias), para adotar-se o modelo mais caro e acelerador de nossa dependência, considerando que, à época, e décadas posteriores, praticamente importávamos o petróleo de que o país necessitava. Congestionamento no tráfego, manutenção das estradas, greves de caminhoneiros, afora os longos percursos, quase duplicam os gastos referentes a exportações e importações, o que se reflete no preço final dos produtos, bem como na balança comercial. Mas assim foi feito. Tudo sempre em nome do "desenvolvimento" e da "modernização".
A euforia era tanta em terras brasílicas que, além de não conduzir à presidência da República seu sucessor, JK ainda teve de passar a faixa ao histriônico Jânio Quadros que conseguira arrecadar a maior votação há história eleitoral do país até então: 6 milhões de votos. Quando hoje se vêem imagens de época, fica-se a pensar como foi possível a massa majoritária do país entregar o posto máximo a alguém cujo comportamento, se não era indicador de distúrbios emocionais, sem dúvida era revelador de simulações cênicas. Bastaram minguados sete meses para que o país iniciasse um roteiro de turbulências e indefinições cujo epílogo redundaria em afiado corte na liberdade e no princípio da autonomia: a trama na qual entrou o governo de João Goulart serviu de suporte para manobras que estavam delineadas desde a almejada deposição de Vargas, contemplada em parte pelo suicídio. Enfim, a tomada do poder pelas forças militares, já ensaiada às vésperas da posse de JK, encontrou terreno propício para nele se consagrar em 31 de março de 1964. A partir daí, o país foi conduzido às profundezas onde, por muitas décadas, nenhuma luz a elas chegaria. Em 1968, com a assinatura do AI-5, o regime impingiu a escuridão total, um "duradouro corte de energia vital" na inteligência brasileira.
Um problema é detectável na cultura política tropical a envolver tanto a República quanto a democracia. Em relação a ambas, parece haver-se fixado um vínculo de caráter "patrimonialista". Durante décadas, a República foi tutelada pelo severo controle das hostes militares. Por haver surgido de um levante (ou de uma "quartelada"), os militares sempre se julgaram detentores (e, por vezes, condutores) do que haviam feito "nascer" (embora saibamos todos que o desejo - ou intimação - provinha da coroa britânica). As sucessivas turbulências, precursoras do golpe de 64, não escondiam o propósito de os militares tomarem para si a direção do Estado. Afinal, um dia (ou numa noite), haviam substituído o brasão imperial pelas insígnias das fardas. Em muito, essa apropriação ideológica retardou e até turvou o conceito de regime civil sólido. Por outro lado, frise-se que inexiste nesse comentário qualquer intenção passível de ser confundido com disfarçado saudosismo monarquista. O sôfrego percurso brasileiro provém exatamente da dupla experiência dolorosa: na Monarquia e na República.
Vale assinalar que a formação militar mais recente dá sinais de reversibilidade, no tocante à função a ser desempenhada, o que não significa ignorar a existência de focos sempre disponíveis para estratégias capazes de andar na contramão da democracia. A prudência não pode ser descartada, principalmente ao levar-se em conta a crescente onda de militarização no mundo, seja em nome de situações reais de conflitos, seja em nome de fantasmagorias estratégicas, direcionadas a planos de dominação com propósitos hegemônicos."

(*) O presente artigo é parte do ensaio "Retorno à brasilidade: confissões e fissuras", publicado na revista "Comum" (n. 24) - FACHA, 2005 (pp. 97-139)

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